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​“Depois daqui, é tudo praia!”. Essa foi a frase dita por uma usuária do metrô, orientando a duas turistas estrangeiras, que estavam dentro de um dos vagões da composição que seguia da estação Uruguai (Tijuca) em direção à estação Jardim Oceânico (Barra). A passageira, que se apresentava com uma cadeira de praia na mão e roupa de banhista, apontava, no mapa das estações, a parada Cardeal Arcoverde/Copacabana. Ou seja: de Copacabana até a Barra, era tudo praia! O curioso do episódio, é que a moradora, na sua seleção, acabou deixando de fora duas estações anteriores: Flamengo e Botafogo. Para ela, ali não era “praia”.  

 

Mesmo que o conceito de “praia” sofra uma variação, levando em conta diferentes territórios, espaços e épocas históricas, ele se sedimenta numa tradição cultural que vem desde o século XVIII até o culto Baywatch dos anos 1990. Sendo assim, é possível pensar na experiência da praia como algo universal. Na atualidade, a praia, especialmente a tropical, é bastante associada à ideia de Paraíso. A origem está na fama que passaram a ter as praias do Havaí nos anos 1950, mesmo que o primeiro resort turístico moderno tenha sido construído, ali, em 1901. A partir de então, coloridos cartões-postais, revistas ilustradas, músicas e filmes, ajudaram a dar fama às praias havaianas que, de fato, se tornaram sinônimo de Paraíso.  

 

Podemos destacar três elementos básicos desta noção contemporânea de praia: a areia, o sol e o mar. Porém, cada um deles deve possuir atributos particulares para que seja legitimada e reconhecida uma “praia”. A areia deve ser preferencialmente branca ou dourada; melhor ainda se parecer limpa e virginal. O sol deve aparecer em todo o seu esplendor, pendurado num céu azul e sem nuvens. E o mar, pacífico, transparente, ou pelo menos verde-azulado, convidativo a atividades hedonistas. Se um destes três elementos não aparecer com estas qualidades, a categoria “praia” será questionada. Porém, com o tempo, outros itens acabaram sendo agregados à noção contemporânea de praia global.  

 

A partir destas considerações e se voltarmos à frase da moradora que informa as turistas sobre “onde está a praia” na cidade, possamos, talvez, justificar a exclusão que ela faz das praias do Flamengo e de Botafogo. Contudo, se levarmos em conta o histórico da construção urbana e turística da cidade do Rio de Janeiro, encontraremos, também, outras justificativas.  

 

A criação e a ocupação do bairro de Copacabana, em fins da década de 1920, proporcionaram a “invenção” da zona Sul - “topônimo” até então não utilizado - e do seu oposto: a grande área que ficou conhecida como “subúrbio”; termo que era utilizado com outro significado. A toponímia associada a essas novas áreas de expansão da cidade construiu uma representação que proporcionou as diretrizes da segregação residencial no Rio de Janeiro por várias décadas, até fins do século XX, na dicotomia zona Sul/zona Norte, quando este último passou a denominar apenas os bairros ferroviários e populares, desprestigiados tanto do ponto de vista social quanto pelo poder público.

 

Morar ou passar o dia em atividades de lazer nas praias do bairro de Copacabana - e, posteriormente, nas de outros bairros da zona Sul da cidade que vão surgindo -, acabaram por ganhar um significado de ascensão social, saúde e bem-estar. O “banho de mar” que antes tinha uma finalidade apenas terapêutica, passa a ser praticado como atividade de lazer ou esporte; e a pele bronzeada passa a ter um significante de beleza. Quanto à praia carioca, esta constitui um elemento fundamental da cultura local. Este espaço - público por natureza - se apresenta na cidade, muitas vezes, também como território de manifestações sociais, lançamento de tendências de moda, subversões e celebrações.  

Morar perto da praia se torna um elemento de distinção social; um privilégio de determinados grupos. Um “privilégio” que acaba por contribuir para que a sensação de pertencimento da praia enquanto espaço público - “de todos”-  seja posta em xeque, até mesmo pelas vias de acesso, notadamente seus meios de transporte, oferecidos pelo poder público aos moradores “de longe” para se chegar a praia. Por tabela, tomar banho de mar nas praias de Copacabana acabou por construir valores sociais e simbólicos que foram oficialmente incorporados na construção turística da cidade do Rio de Janeiro. Mesmo que, recentemente, a própria Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro (RioTur) tenham buscado diversificar e dar maior visibilidade a outros atrativos e territórios da cidade, muitos mapas de guias turísticos continuam a privilegiar a zona Sul, com um forte apelo às suas praias. A relação “praia – esporte - carnaval e futebol”, tanto favorece quanto engessa e distingue o potencial turístico da cidade.  

 

Considerada uma das cidades mais belas de todo o mundo, a cidade do Rio de Janeiro possui o privilégio de conciliar “natureza” - na forma de praias, verde, montanhas, lagoas e baía – e “civilização” - arranha-céus, viadutos e portos de comércio. Esbanjando a impressão de viver um eterno verão, a cidade é o lugar de moradia de um povo considerado hospitaleiro, informal, alegre e criativo, ou, como define uma edição do Jornal do Brasil de 28 de fevereiro de 1999: “lugar de um “povo sexy, esperto, que não gosta de dias nublados nem de sinal fechado”. Apelidada, em 1908, de “Cidade Maravilhosa” pelo jornalista e professor Coelho Neto, já foi capital de um Reino, de um Império e de uma República. Hoje é a cidade brasileira mais visitada por turistas internacionais para o exercício do lazer, e o estado do Rio de Janeiro aparece entre os três principais emissores e receptores de turistas nacionais, segundo dados do Ministério do Turismo. Neste contexto, sem dúvida, “a praia”, e especialmente as da zona Sul da cidade, tem um papel fundamental na construção da sua imagem turística.

 

Antropologicamente, a fotografia possui um aspecto híbrido permitindo a conexão entre arte, conhecimento e informação. Com todas as ambiguidades que fazem parte de sua essência, mostra-se como um elemento adequado para mediar arte e ciência podendo tornar-se metáfora visual, ligando espaços entre o visível e o invisível. De acordo com a semiótica, a fotografia, é por natureza um índice; o registro de um ocorrido, que pode apresentar características sociais, documentais ou artísticas. É este caráter indicial da fotografia que a diferencia da pintura ou do desenho, pois o fotógrafo tem como base a realidade; o fato existente. Neste contexto incluem-se as fotografias históricas, documentais e sociais. Nestas, o valor é registrar a existência das coisas; as transformações advindas do tempo e a diversidade das práticas sociais. A categoria de fotografias antigas pode servir de contraponto a imagens contemporâneas e fontes de leituras científicas sobre temas diversos. Contudo, uma foto que apenas registra, também pode ter um valor artístico, já que carrega, nela, o ponto de vista de quem fotografa. No enquadramento de uma fotografia, seu autor decide o que mostra e o que deixa de fora construindo, desta forma, uma determinada “realidade” e um determinado discurso.

 

Nosso projeto e exposição utiliza fotografias antigas e atuais da praia de Copacabana como um pré-texto para uma reflexão crítica sobre a construção turística da cidade, e um estudo sobre “a praia”. O tema principal é o lazer e os usos da praia de Copacabana, transmitido através dos diferentes olhares dos integrantes do projeto. Percebe-se que, diferente de uma praia particular ou isolada, aparece aqui uma praia “democrática”, “compartilhada”, “de todos”. Mesmo que seus espaços, etiquetas e regras estejam invisivelmente demarcadas. 

Dentre os autores que guiam as reflexões do projeto estão Alain Corbin, Elizabeth Dezouzart Cardoso, Julia O´Donnell, Nelson da Nóbrega Fernandes, Orvar Lofgren e Stela Kaz. 
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